sexta-feira, 24 de novembro de 2006
A Porta
"Jesus respondeu: Facam todo o esforco possivel para entrar
pela porta estreita, porque eu lhes digo: muitos tentarao entrar,
e nao conseguirao. Uma vez que o dono da casa se levantar e
fechar a porta, voces vao ficar do lado de fora. E comecarao a
bater na porta, dizendo: 'Senhor, abre a porta para nos!' E ele
respondera: 'Nao sei de onde sao voces'. E voces comecarao a
dizer: 'Nos comiamos e bebiamos diante de ti, e tu ensinavas
em nossas pracas!' Mas ele respondera: 'Nao sei de onde sao
voces. Afastem-se de mim'". Lucas 13, 23-27
"A most melancholy voice sobbed, 'Let me in - let me in!' 'Who
are you?' I asked, struggling".
Lockwood, em Wuthering Heights, de Emily Bronte
Amanda e eu nos conhecemos na boate. Nao dentro: na porta.
Eu pastoreava uma matilha de amigos, todos pavlovianamente
vestidinhos no melhor estilo da estacao, e so eu de roupas
coloridas. Amanda nos relanceou um olhar e sentenciou: todos
entram, menos o aloha. Camisa florida aqui, nunca.
Eles escorracaram-se para dentro e eu nao ranqueei um
segundo olhar de Amanda. Resignado, carreguei minhas
frustracoes para casa.
Correram algumas semanas e a tribo decidiu, num supetao,
voltar a boate. Como sempre, eu estava fantasiado de
eu-mesmo e carimbei: aquela ruiva vai me deixar na porta de
novo. Eles me tranquilizaram: imagina!, se eu fosse barrado,
iriamos todos para outro lugar, e muito melhor!
Amanda me farejou de longe e nao tirou as narinas de mim. O
pessoal pressentiu: a ruiva da porta esta toda aberta pra voce.
Assentamos mais de hora na fila e Amanda sempre me
desviando olhares sonegados. Quando chegou nossa vez,
chicoteou: os amiguinhos com estilo, entram, o camisa-florida,
fica. E nao me olhou mais.
Os amiguinhos, aqueles putos, nem tossiram: tinham
esbarrado com a Alicinha na fila, combinaram de se esbarrar
mais la dentro, e voce viu a bunda da Alicinha hoje?, nao
podiam deixar a bunda da Alicinha na mao!, e entraram. Eu,
mais uma vez, me deportei de volta pra casa.
No mes seguinte, meus mui-amigos planejaram com
antecedencia uma nova ida a boate. Eu nao queria participar,
mas houve pressao. Aparentemente, a bunda da Alicinha
estaria la. Por sorte, tia Eulalia morrera no ano anterior e eu
tinha algumas roupas escuras no armario.
Depois da hora ritual de fila, os suplicantes chegaram diante do
oraculo. Os olhos de Amanda sussuraram, discretissimos, que
me reconheciam, mas o resto de seu corpo preferiu nao se
comprometer. Fez um gesto soberbo e ganhamos entrada,
sem burocracias.
Tirando o bundao da Alicinha - realmente fenomenal, mas
melhor apreciado diariamente, de nove as onze, no posto seis -
a boate era a estampa de qualquer outra: escura,
ensurdecedora, emaranhada, esfumacada.
E, por entre a fumaca, logo vi o cabelo malagueta de Amanda
marchando com diligencia, olhando para o escuro, estalando
os saltos. Pensei: esta a minha espreita! Mas nao: ventou por
minha mesa duas vezes e nao fez nada. Por fim, fez. Ocupou a
cadeira a minha frente e desferiu: eu nao devia ter te deixado
entrar. Voce nessas roupas e a profanacao de um lugar sagrado.
E a culpa e minha. Daqui a duas horas, o movimento some e eu
estou liberada. Me espere aqui e vamos entrar em um lugar
muito melhor. E entramos.
Nossos dois anos de casamento foram delirantemente felizes,
ate o dia em que eu estava tomando banho e ouvi, por entre a
agua, o som da chave na fechadura. So Amanda tinha a chave.
Fechei a agua e chamei: Amanda? Ela uivou: sou eu, sou eu,
abre a porta, por favor, me deixa entrar. Tudo bem?, eu quis
saber, ainda no chuveiro. A essa hora, ela deveria estar no
trabalho. E por que sua chave nao funcionava? A resposta
veio num estalo: abre essa porta agora, rapido.
Pinguei pelo banheiro, correndo, mal encostando a toalha no
corpo, tocou o telefone e nem atendi, mas a secretaria atendeu:
Alo? Tem alguem em casa?, implorou a voz. Era Norma, colega
de trabalho de Amanda. Atende, por favor, suplicou e, entao,
desabou: meu Deus, nao sei o que fazer, a Amanda, ela, nos
estavamos tentando entrar no onibus, o motorista nao parou,
ela foi correr atras, tentou pular pela porta aberta e o motorista
fechou a porta na hora, ela ficou com o braco preso, foi
sendo arrastada, meu Deus, meu Deus!, e eu, ja enxuto, me
aproximei do telefone, mas nao atendi, olhei a porta, mas nao
abri, coloquei a mao sobre a secretaria e senti sua vibracao:
eu corri atras do onibus, nao acredito que estou contando isso
para uma secretaria, voce nao esta ai?, nao sei o que fazer, eu
corri atras do onibus, vi a Amanda sendo arrastada pela rua,
ela gritou o tempo todo, eu tambem, os passageiros gritaram,
mas o motorista nao parava, nao parava, ate que parou, parou e
fugiu, mas ela ja estava morta, morta, e estou aqui do lado do
corpo, preciso de voc-clique.
No silencio, ouvi a respiracao canina de Amanda do outro lado
e caminhei ate la. O som do meu celular tocando chamou sua
atencao e ela se achegou a porta, me deixa entrar, por favor,
eu preciso entrar, eu preciso te ver, e passou os dedos
sensualmente em volta do olho magico, como se alisando meu
rosto, aqueles dedos de unhas longas e negras que sempre me
excitaram.
Acariciei a macaneta, que solucou mecanicamente ao meu
toque. Amanda ericou as orelhas e ganiu: por favor, eu nao
quero ir embora, voce prometeu que iriamos ficar juntos pra
sempre, que me protegeria e me acompanharia, nao pode me
largar aqui fora, eu te peco.
Me espalmei contra a porta como uma lagartixa e fiquei
apreciando Amanda, registrando cada poro, cada pestana,
sentindo ainda o aroma citrico do seu sabonete de limao,
embalado pelo som frustrado da chave na fechadura,
chorando lagrimas secas.
Algum tempo depois, sumiu. So fui ve-la de novo quando
reconheci o corpo.
Praia do Meio, Trindade, Paraty, 2 de agosto de 2004
Conto retirado do livro "onde perdemos tudo" de Alex Castro. Encontrei
uma referencia a esse autor, q tb eh blogueiro, no blog
Pensar Enlouquece. Pense Nisso.
Obs: Ainda to "curtindo" a minha fossa...
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